Coisas de outros tempos
quinta-feira, março 03, 2005
As Redacções da Guidinha
As Redacções da Guidinha, da autoria de Luís de Sttau Monteiro, que se destacou no panorama da literatura portuguesa sobretudo como dramaturgo, foram publicadas no Diário de Lisboa, nomeadamente no suplemento A Mosca, cujo conselho redactorial integrou. Mais tarde, já nos anos 70, ressurgiriam em O Jornal, tendo recentemente sido publicada uma colectânea pela Areal Editores, intitulada Redacções da Guidinha, em 2002.
A este propósito já o blogue Uma Sandes de Atum se havia referido a estas «redacções» num post datado de Janeiro passado.
Carta aberta aos senhores da política
Senhores da política:
Oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua oiçam o que se diz na rua senão qualquer dia estão no olho da rua a ouvir o que se disse na rua.
in O Jornal, 22.09.1978
O que há cada vez mais é falta de espaço
A gente não tem espaço para nada nem sequer para os sapatos e as coisas vão de mal a pior é o que eu digo vão de mal a pior a minha prima Adriana que é filha da minha tia Leocádia que vive na terra casou agora com um chamado Hércules do Dafundo e como não tem casa vão viver num quarto em casa da minha tia para eles casarem foi preciso o meu tio e a minha tia irem para o quarto pequeno lá porquê não sei mas como entre o grande o pequeno a diferença é de cinco centímetros no vão da janela o problema é indiferente como eu ia dizendo os meus tios tiveram de ir para o quarto pequeno que até agora era de arrumações e de ninharias e vai agora as arrumações e as ninharias foram mudadas para o vão da escada o meu tio no outro dia ao entrar em casa esqueceu-se desta mudança tropeçou numa ninharia que não tinha cabido no vão da escada e bumba! Ficou com um galo na testa que não foi ninharia nenhuma como a sala.era pequena para todos foi preciso comprar mais uma poltronita a prestações para o tal Hércules arrumar o traseiro e como a poltronita ocupa um espaço danado foi preciso puxar a mesa para um canto e colocar o candeeiro que iluminava o meu tio quando ele lia o jornal atrás da porta o que também não fez grande diferença porque como o meu tio não lê o jornal desde que eles subiram de preço o candeeiro não é preciso para nada outra transformação que tiveram de fazer foi na cozinha que chegava para três comerem apertados mas que não chega para quatro nem mesmo apertados de maneira que foi preciso guardar na varanda o balde em que está o esfregão de lavar a escada tal como foi preciso fazer uma reparação para a porta do armário da pia abrir ao contrário o que é giro que na casa de banho não se conseguiu fazer nada de maneira que às horas de ponta aquilo é um inferno danado antigamente no Verão os meus tios e a minha prima comiam na varanda à tardinha para apanharem o fresco mas a varanda é pequena de forma que só eles é que lá cabiam vai agora para caber o Hércules tiveram de empurrar a mesa para o fundo e o resultado é que conseguem comer os quatro desde que um fique na marquise por enquanto estão todos cerimoniosos e deixam o tal Hércules comer na varanda enquanto a minha tia fica com o rabo na marquise e os pés de fora mas lá mais para outubro quando as cerimónias se forem gastando é que vão ser elas sim porque não há coisa que se gaste mais de pressa do que a cerimónia esta falta de espaço que há agora não é só nas casas não senhor é em toda a parte antigamente havia falta de espaço nas plataformas dos autocarros mas agora até já há falta de espaço nas paragens e já há bicha quando chove para se ver quem é que fica dentro dos abrigos sem apanhar chuva nas praias é o que se vê é tanta gente que ninguém vê o sol não sei se é verdade mas disseram-me que para o ano vai haver umas pessoas na praia a alugar binóculos a vinte e cinco tostões cada espreitadela do mar e dez tostões cada espreitadela das sandes que há nas barracas de madeira a que não chega ninguém por haver bichas tão grandes e se isto é assim agora o que não irá ser se acabar a emigração disse o meu Pai que a partir de não sei de quando vão ser revistas as rendas de casa conforme o volume delas ora eu acho que também deviam medir o volume das pessoas que lá vivem sim porque a minha tia Amélia que tem dois metros de cintura e que vive numa casa em que a sala tem quatro por quatro devia pagar menos renda do que o meu primo Joaquim que é um lingrinhas e que também vive numa sala com quatro por quatro o governo para ser justo devia medir os quartos e os inquilinos para fazer uma justiça decente de outra forma continua tudo na mesma mas o pior não é isso o pior são as contradições do governo essas é que são graves sim porque passam a vida a dizer que a gente deve ter cultura ora para ter cultura é preciso ter livros e espaço para livros e depois não constroem casas em que a gente caiba sem livros quanto mais com livros o que eu queria saber era onde é que se guardam livros nas casas de hoje e onde se lê será no corredor? será na varanda? será no patamar da escada? será debaixo da mesa da casa de jantar? debaixo da mesa da casa de jantar da minha casa não é com certeza porque está lá a viver a minha prima Adelina que veio da terra enfim não se pode dizer que isto esteja tudo a correr às mil maravilhas não senhor mas a gente ainda tem esperança onde é que a gente a guarda é que não sabemos com a falta de espaço que há só se for no coração porque no estômago não cabe nada está cheio de vácuo
in O Jornal, 28.09.1979
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